A Cabaça – Lagenária vulgaris: Uma Planta Multiuso com Rica História Cultural

Quem já bebeu água de cabaça, sabe o gostinho peculiar que ela tem. Gostinho esse que me transporta a minha infância, quando, nos meses de férias, passava dias na casa dos meus avós no sítio Cercado das Pedras, município de Piquet Carneiro-CE. Como toda criança, cheia de curiosidade, acompanhava meu avô, o Sr. Nascimento Tomé, à roça e observava que uma presença era constante – a cabaça. Ela era usada como cantil e era guardada embaixo de um juazeiro, repousando à sua sombra enquanto meu avô trabalhava e eu, claro, brincava. Logo tive a minha própria cabaça, que meu avô confeccionou para mim. Era uma cabaça pequenina, mas que eu não trocava por nada. O sabor daquela água ainda reside em mim, assim como a forte saudade de meus avós.

É neste clima saudosista que eu vos apresento a CABAÇA:

Classificação científica

Reino: Plantae

Clado: Angiospérmicas

Clado: Eudicotiledóneas

Ordem: Cucurbitales

Família: Cucurbitaceae

Género: Lagenaria

Espécie: Lagenária vulgaris

Introdução

Cabaça ou porongo é a designação comum dos frutos de plantas da família das cucurbitáceas, especialmente da Lagenária vulgaris. As plantas são chamadas de cabaceira, porongueiro, cabaceiro e, na Amazônia, de jamaru.

A Lagenaria vulgaris, é uma planta que possui profunda ligação com diversas culturas ao redor do mundo, sendo especialmente valorizada em regiões tropicais e subtropicais. Sua história remonta a milhares de anos, sendo uma das primeiras plantas domesticadas pela humanidade. A cabaça não é apenas uma fonte de alimento, mas também desempenha papéis culturais e artesanais significativos. Este artigo explora em profundidade a biologia, os usos e os benefícios dessa planta multifacetada.

Características Botânicas da Cabaça

Como relatado anteriormente, a Cabaça, pertence à família Cucurbitaceae, a mesma de outras plantas como o pepino, a melancia e a abóbora. Ela é uma planta trepadeira e anual, originária da África tropical, mas que se adaptou a diferentes partes do mundo, especialmente nas Américas e na Ásia.

Morfologia: A cabaça apresenta uma planta de crescimento vigoroso, com folhas grandes e lobadas, e flores brancas ou amarelas. Seus frutos, que são a parte mais característica da planta, podem ter diversos formatos: arredondados, ovais, cilíndricos ou mesmo em formas mais complexas. O tamanho e a textura da casca variam conforme a variedade cultivada.

Ciclo de Vida: A planta possui um ciclo de vida anual, que se desenvolve a partir do plantio de sementes, com germinação rápida em solo fértil e bem irrigado. A colheita ocorre entre 90 e 120 dias após o plantio, dependendo das condições climáticas e do tipo de cultivo.

História e Origem da Cabaça

A cabaça é uma planta de origem africana, cultivada desde os tempos antigos. Estudos arqueológicos indicam que a planta foi domesticada há mais de 12.000 anos, sendo utilizada por povos indígenas e tribais como alimento e ferramenta. Sua disseminação ocorreu ao longo do tempo por meio de rotas comerciais, principalmente para a Ásia e as Américas. Trabalhos arqueológicos identificaram artefatos da planta em diversas regiões do mundo. Provavelmente por ser uma fruta flutuante como o coco, cujo formato lacrado permitiu seu transporte através de rios e correntes oceânicas desde épocas remotas, permitindo que suas sementes intactas se difundissem por todo o globo.

Na América, especialmente nas regiões do Caribe e América Central, a cabaça foi adotada por civilizações antigas como os maias e astecas, que utilizavam os frutos da planta não apenas para alimentação, mas também para a fabricação de utensílios, recipientes e instrumentos musicais.

Uso da Cabaça

A cabaça tem uma ampla gama de aplicações, que incluem:

Uso Alimentar:

Apesar de muitas vezes associada apenas a seu uso como objeto de arte ou utensílio, a cabaça também é comestível. Seu fruto, quando ainda jovem e imaturo, é consumido em diversas preparações culinárias, principalmente em sopas e cozidos, semelhante à abobrinha, fornecendo vitaminas e minerais importantes. A cabaça é uma excelente fonte de fibras, minerais e vitaminas, especialmente vitamina C, potássio e magnésio. Quando madura, a cabaça pode ser consumida em forma de farinha ou usada em receitas específicas, sendo valorizada em algumas cozinhas tradicionais por seu sabor suave e textura macia. As sementes da cabaça são comestíveis e ricas em proteínas, fibras e óleos essenciais.

Receita: Refogado de Cabaça com Especiarias

Ingredientes:

500g de cabaça jovem, descascada e cortada em cubos pequenos.

2 colheres de sopa de azeite de oliva.

1 cebola média, picada.

2 dentes de alho, picados.

1 tomate médio, picado.

1 colher de chá de cúrcuma (açafrão-da-terra).

1 colher de chá de cominho em pó.

1/2 colher de chá de páprica doce (ou picante, se preferir).

Sal e pimenta-do-reino a gosto.

1/2 xícara de coentro ou salsinha picada.

1/2 xícara de água (se necessário).

Modo de preparo:

Aqueça o azeite em uma panela média e refogue a cebola até que fique transparente.

Adicione o alho e refogue por mais um minuto, até soltar o aroma.

Acrescente os cubos de cabaça, o tomate, e os temperos (cúrcuma, cominho, páprica, sal e pimenta). Misture bem para envolver os pedaços nos temperos.

Tampe a panela e cozinhe em fogo baixo por cerca de 15 a 20 minutos, mexendo ocasionalmente. Se necessário, adicione pequenas quantidades de água para evitar que grude no fundo.

Quando a cabaça estiver macia, desligue o fogo e finalize com o coentro ou a salsinha picada.

Sirva quente como acompanhamento ou prato principal com arroz e feijão.

Uso Artesanal e Cultural:

A cabaça é amplamente utilizada em diversas culturas para a confecção de utensílios e objetos de decoração. Após o amadurecimento e secagem do fruto, sua casca endurece, tornando-se resistente e durável. Isso permite que a cabaça seja transformada em uma variedade de itens, como:

Recipientes: O formato natural da cabaça é ideal para a fabricação de potes, garrafas e tigelas. Em algumas culturas africanas, esses recipientes são considerados essenciais para armazenamento e conservação de alimentos e para transporte de líquidos, normalmente, água para se beber durante uma viagem;

Instrumentos Musicais: A cabaça também é usada como amplificador acústico em instrumentos musicais, como o chocalho, afochê, maraca, sequerê ou xequerê, abê, malimba e outros tipos de percussão. Esses instrumentos desempenham um papel importante nas manifestações culturais de diferentes povos.

Decoração e Arte: Em muitas culturas, especialmente na África e no Brasil, a cabaça é utilizada como base para artesanato, sendo esculpida e pintada para criar peças artísticas, máscaras e adornos.

Uso Medicinal:

Em algumas tradições, a cabaça é utilizada para preparar remédios caseiros, com propriedades diuréticas e anti-inflamatórias. Na medicina aiurvédica, a cabaça é usada para tratar problemas digestivos, inflamações e doenças de pele. É também utilizada para desintoxicação e fortalecimento do sistema imunológico.

Observações:

No que diz respeito ao berimbau brasileiro, a menção ao uso de cabaças da família das cucurbitáceas, como a Lagenaria vulgaris, é incorreta. A cabaça utilizada no berimbau é o fruto de uma espécie não aparentada com a cabaça. No berimbau, a planta utilizada é a Crescentia cujete (família bignoniáceas), também conhecida como coité, cuia e cueira, da qual nós falamos em outra postagem. (Natureza Bela: Coité)

Em casas ribeirinhas, indígenas e quilombolas do Brasil, os frutos dos cabaceiros, das cuieiras e dos porongos costumam ser partidos em vários formatos, esvaziados do miolo, polidos e, quem às vezes, tingidos e decorados com incisões de exímia precisão, para servir como baldes, coiós, bacias, copos, tigelas; ou como cuias de tomar água, tacacá, chibé e mingau, no Norte e Nordeste, ou chimarrão e tereré, no Sul e no Centro-Oeste. Desses mesmos frutos que são transformados em objetos para comer e beber, também se fazem instrumentos de trabalho de pescadores, seringueiros e produtores de farinha de mandioca, que partem suas bandas de cuia para levá-las aos rios, às florestas e casas de forno.

Consideradas por diversos grupos humanos como elementos dotados de poderes especiais, as cuias e cabaças estão presentes num vasto conjunto de práticas rituais e tradições religiosas, de matrizes indígenas e africanas em especial, amplamente difundidas no Brasil. Inteiras ou cortadas em partes, ocas, preenchidas ou envoltas em palhas e contas, lisas ou decoradas com incisões, todas têm seus donos na Terra e nos outros mundos, e constituem objetos prenhes de significados ritualísticos que só podem ser integralmente compartilhados por iniciados que conhecem “o fundo da cabaça”.

Além da predominância da tradição na maior parte dos casos, é interessante observar que todos os usos relativos estão associados a culturas com baixa tecnologia, já que os objetos adaptados a partir da casca da planta já foram aperfeiçoados há muito tempo, em quase todos os locais de uso atual, ou estes já tiveram acesso a eles. Por outro lado, pode-se associar seu uso também à culturas economicamente distantes dos centros, já que mesmo tendo acesso, muitos locais adotam o uso por questões financeiras.

Propriedades Medicinais da Cabaça

A cabaça também tem sido reconhecida por suas propriedades medicinais. Em várias tradições populares, o fruto da cabaça é usado para tratar uma gama de condições de saúde, incluindo problemas digestivos, inflamações e até doenças relacionadas ao sistema urinário.

Propriedades antioxidantes: A cabaça contém compostos bioativos que têm propriedades antioxidantes, ajudando na neutralização dos radicais livres no corpo e, consequentemente, no combate ao envelhecimento precoce e ao desenvolvimento de doenças crônicas.

Ação diurética: O consumo de sucos de cabaça tem sido tradicionalmente utilizado para promover a eliminação de líquidos do corpo e tratar problemas de retenção hídrica, especialmente em tratamentos de doenças renais.

Cultivo e Produção de Cabaça

O cultivo de cabaça é relativamente simples e adaptável a diversos tipos de solo e condições climáticas. A planta prefere climas quentes e ensolarados, com boa disponibilidade de água. No entanto, ela não tolera solos muito ácidos ou encharcados. O plantio é feito a partir de sementes, que germinam rapidamente em solo bem preparado.

Plantio: As sementes devem ser plantadas em local definitivo, pois a planta não tolera bem o transplante.

Espaçamento e Manejo: O ideal é que as plantas sejam espaçadas de 1,5 a 2 metros, permitindo que as videiras se espalhem livremente. Durante o crescimento, é importante garantir um controle eficiente de pragas e doenças, como o oídio, que pode afetar a planta.

Solo: Prefere solos bem drenados e férteis.

Irrigação: Necessita de rega regular, especialmente em climas secos.

Exposição: Gosta de sol pleno, mas pode tolerar alguma sombra parcial.

Colheita: A cabaça deve ser colhida quando seus frutos atingem o tamanho desejado e a casca começa a endurecer. Se o objetivo for utilizar a cabaça para artesanato ou instrumentos musicais, o fruto precisa ser completamente maduro e seco.

Impacto Ambiental e Sustentabilidade

A cabaça é uma planta sustentável, pois todas as suas partes podem ser utilizadas, minimizando o desperdício. Além disso, seu cultivo não exige o uso intensivo de fertilizantes ou pesticidas, tornando-a uma excelente opção para a agricultura sustentável.

Conclusão

A Lagenaria vulgaris, ou cabaça, é uma planta de múltiplos usos, que abrange desde a alimentação até o artesanato, a medicina tradicional e o cultivo sustentável. Seu impacto cultural e econômico é significativo, especialmente em regiões tropicais e subtropicais, onde tem sido cultivada e utilizada por milhares de anos. Com sua versatilidade e benefícios, a cabaça continua a ser uma planta de grande importância, representando uma ponte entre o passado e o presente, unindo história, saúde e arte.